Para uma análise ampliada, é essencial abandonar o uso indiscriminado de “gênero” como categoria universal. Na teoria cinematográfica contemporânea, a identidade de uma obra emerge do entrecruzamento de quatro eixos estruturantes, cada um operando em um nível diferente da construção audiovisual.
1. Técnica
Pergunta central: Como a imagem foi produzida?
Refere-se ao processo físico ou digital de criação do movimento, distinguindo se as imagens derivam de captura do mundo ou de fabricação quadro a quadro. A técnica implica decisões estéticas, limitações materiais e convenções históricas.
Live Action
É o registro fotográfico contínuo de elementos reais, produzidos por dispositivos ópticos (câmeras, sensores digitais).
Implica:
• Profundidade de campo real
• Indexicalidade da imagem (noção de Bazin)
• Direção de atores e mise-en-scène física
Animação
Método baseado na manipulação quadro a quadro, não um gênero. O animador cria ou transforma diretamente cada fotograma, conferindo à imagem um grau radical de construção.
Modalidades:
• Desenho animado
• CGI
• Stop-motion
• Rotoscopia
• Animação de recortes
Referência institucional: ASIFA – Association Internationale du Film d’Animation (padrões profissionais e curadoria teórica).
Importante: A animação não depende da matriz fotográfica e, por isso, altera o modo como representa o real, mas não limita suas possibilidades narrativas. Em vez de indexicalidade direta, opera por meio de um realismo construído: a verossimilhança nasce da coerência estética, do ponto de vista autoral e da organização discursiva, não do registro físico de um evento. Essa lógica permite que a animação seja tão realista quanto o live action quando o objetivo é reconstruir fatos, emoções ou memórias.
O campo da animação documental demonstra essa capacidade ao usar a animação para retratar acontecimentos históricos, experiências subjetivas ou eventos sem arquivo visual. Filmes como Waltz with Bashir (Ari Folman, 2008) e Persepolis (Marjane Satrapi & Vincent Paronnaud, 2007) mostram que a animação amplia, e não reduz, o repertório documental, especialmente quando há lacunas de imagem, riscos éticos ou complexidades psicológicas difíceis de filmar.
2. Abordagem
Pergunta central: Qual é o tipo de pacto estabelecido entre filme e espectador?
Define o estatuto epistemológico da obra: como a imagem se relaciona com o real e como o espectador é convidado a interpretá-la.
Ficção
Cria um universo narrativo (diegese). Mesmo que baseada em fatos reais, a existência de encenação, roteiro e estrutura dramática define o pacto representacional:
“Você está vendo uma construção narrativa”.
Elementos-chave:
• Enredo elaborado
• Personagens funcionais
• Modelização dramática (Aristóteles, Propp, Field)
Documentário
Compromisso direto com o mundo histórico. A International Documentary Association define documentário como “tratamento criativo da realidade”.
O documentário contemporâneo opera em múltiplos modos de representação (Nichols):
• Expositivo
• Observativo
• Participativo
• Reflexivo
• Performativo
• Poético
Não se trata de espelhar o real, mas de posicioná-lo discursivamente.
Experimental (Avant-garde)
Rompe com pressupostos narrativos, deslocando o foco para a materialidade sensorial: tempo, luz, textura, repetição, colagem.
Não persegue verossimilhança nem compromisso factual.
O pacto é de experiência estética, não narrativa ou documental.
3. Gênero
Pergunta central: O que está sendo contado e de que maneira dramatúrgica?
Gênero é uma categoria temática e estrutural, baseada em convenções de enredo, estilo, ritmo e emoção dominante. Não atua no nível técnico nem no nível epistemológico.
Categorias clássicas:
• Terror
• Comédia
• Drama
• Thriller
• Ficção Científica
• Musical
• Western
• Romance
Observações avançadas:
• É comum a hibridização de gêneros (drama + sci-fi, thriller + comédia).
• Filmes experimentais frequentemente não comportam gêneros narrativos, sendo classificados como obras abstratas, estruturais ou poéticas.
• Gênero não determina o método de produção, nem o formato.
4. Formato
Pergunta central: Como a obra é estruturada, distribuída e consumida?
Trata-se da arquitetura temporal, industrial e de exibição, definida por critérios técnicos e institucionais (academias, festivais, regulamentações televisivas).
Curta-metragem
Geralmente até 30–40 minutos. É o território mais livre para inovação estética, narrativas não lineares e experimentações formais.
Média-metragem
Entre 30 e 60–70 minutos. Historicamente um espaço “intermediário”, pouco viável para salas comerciais, mas extremamente fértil para documentários televisivos, produções ensaísticas e narrativas que exigem respiro sem a amarra do longa.
Longa-metragem
Acima de 60–70 minutos. É o formato de maior retorno industrial e o padrão dominante em festivais e exibições comerciais.
Série / Minissérie
Organização episódica que permite longos arcos dramáticos, expansão de personagens e modularização do enredo.
Implica lógica industrial própria (writers’ rooms, showrunners, temporizações seriadas, cliffhangers).
Síntese: Como cruzar os quatro eixos
A classificação de uma obra não depende de uma única variável.
A identidade fílmica emerge do entrecruzamento simultâneo de técnica, abordagem, gênero e formato.
Exemplo 1
La Jetée (Chris Marker, 1962)
• Técnica: Fotomontagem (imagens fixas organizadas como cinema)
• Abordagem: Ficção ensaística experimental
• Gênero: Ficção Científica distópica
• Formato: Média-metragem (28 min)
Resultado: uma obra híbrida cuja força está justamente na combinação de elementos não convencionais.
Exemplo 2
The Office (versões UK e US)
• Técnica: Live Action
• Abordagem: Ficção com estética documental (mockumentary)
• Gênero: Comédia situacional (Sitcom)
• Formato: Série televisiva
A estética documental não altera a abordagem: trata-se de ficção estilizada.
Referências
Animação
• Wells, Paul – Understanding Animation. (resenha acadêmica: https://bit.ly/44Vefg4)
• Bendazzi, Giannalberto – Animation: A World History (excerto aberto): https://bit.ly/3z0Jy7i
• Ward, Paul – Animation Studies (revista): https://journal.animationstudies.org/Documentário
• Nichols, Bill – Introduction to Documentary (capítulo introdutório aberto): https://bit.ly/4agq0Z0
• Renov, Michael – “Theorizing Documentary” (PDF): https://bit.ly/3wYxqLZ
• Bruzzi, Stella – New Documentary: A Critical Introduction (trecho disponível): https://bit.ly/3Am7fdCCinema experimental e ensaístico
• Corrigan, Timothy – The Essay Film (resenha e trechos): https://bit.ly/3yJduE6
• Sitney, P. Adams – Visionary Film (disponível parcialmente): https://monoskop.org/P._Adams_SitneyEstudos gerais de cinema
• Bordwell, David & Thompson, Kristin – Film Art (material suplementar oficial): https://bit.ly/3xPGNQM
• Monaco, James – How to Read a Film (capítulo introdutório aberto): https://monoskop.org/James_Monaco